Da beleza paradisíaca à desigualdade social infernal, o Rio de Janeiro é uma cidade essencialmente em paradoxo. Dona uma das geografias mais bonitas do planeta em contraste com a desigualdade social extrema, a antiga capital do império e da república hoje se vê em terrível abandono.
Da praia ao asfalto sujo, da montanha ao trânsito infernal, do verde das matas à violência, o Rio de Janeiro é uma cidade de extremos, e o centro do Rio é um dos símbolos desses paradoxos, onde o passado e o presente se cruzam constantemente, entre a miséria e o luxo, como que significando a própria cidade em verdade.
Em meio ao centro do Rio, no número 30 de uma rua apropriadamente batizada de Luis de Camões, o abandono da cidade se encontra com aquilo de mais rico que a humanidade pode possuir, literal e simbolicamente. Um dos mais belos edifícios da cidade, o Real Gabinete Português de Leitura, como uma das joias da coleção de prédios antigos do centro, se contrasta em absoluto com a deselegância das novas construções, a sujeira e a pobreza que também compõe hoje o ecossistema da cidade. Quando se entra nele, porém, tudo se transforma.
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Eleito em 2014 a quarta biblioteca mais bonita do mundo, o Real Gabinete tem sua fachada inspirada no monumental Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa – feita com pedras trazidas de navio de Portugal para o Rio – e, como muitos dos prédios mais antigos do centro do Rio, tudo em sua arquitetura e decoração lembra Portugal – foi aqui, afinal, que a corte portuguesa desembarcou em massa para fugir de Napoleão, em 1808, com cerca de 15 mil pessoas.
Em 1837, quando a instituição foi fundada, o Rio de Janeiro já não era há 16 anos capital do reino de Portugal, e o Brasil era independente há 15 anos, mas a influência portuguesa e a transformação da cidade já estavam mais do que dadas. Foi quando um grupo de 43 imigrantes decidiu por criar uma biblioteca para troca e ampliação de conhecimentos de seus sócios e dar oportunidade aos portugueses residentes de rememorar, ilustrar e viver o espírito lusitano no Rio.
A construção do edifício só foi concluída em 1887, e o Real Gabinete Português tornou-se um marco arquitetônico e cultural da presença aqui de Portugal. Assim, as quatro estatuas que recebem os visitantes na fachada do edifício não poderiam ser outras: Pedro Álvares Cabral, Luís de Camões, Infante Dom Henrique e Vasco da Gama. Na mesma fachada, quatro medalhas lembram grandes escritores lusitanos: Fernão Lopes, Gil Vicente, Alexandre Herculano e Almeida Garrett.
O prédio foi aberto à visitação pública em 1900, e o elenco de corriqueiros visitantes ilustres do passado não deixa também à desejar – era comum encontrar nomes como Machado de Assis, Olavo Bilac e João do Rio percorrendo suas prateleiras atrás de volumes ou livros raros.
Não por acaso, as cinco primeiras sessões oficiais da Academia Brasileira de Letras, fundada por Machado de Assis, foram realizados no Real Gabinete. Além de possuir o maior acervo de obras portuguesas fora de Portugal – e uma extensa coleção de livros raros – o local é, por dentro, ainda mais espetacular e belo do que por fora; é, portanto, um excelente cenário para qualquer reunião.
O silêncio dominante no interior do prédio se contrasta com a beleza gritante de sua decoração. Para além da beleza que naturalmente uma enorme coleção de livros em prateleiras traz para qualquer lugar, cada mesa, cadeira, cada adorno, cada prateleira de madeira esculpida, cada quatro na parede traz ao lugar a aura de um verdadeiro museu – e não é por acaso, pois o local abriga, além dos mais de 350 mil livros estrangeiros e nacionais, uma vasta coleção de pinturas.
Antes de procurar qualquer livro dentro do Real Gabinete, porém, a primeira recomendação ao visitante, ao adentrar o salão de leitura, é olhar para cima: além de um candelabro espetacular adornando o teto do salão, uma incrível claraboia em ferro e vidro – reza a lenda ser a primeira desse tipo no Brasil – transforma ainda mais a experiência de visitar essa biblioteca em uma experiência única, como observar os vitrais das mais belas igrejas europeias.
É nesse necessário que diariamente cerca de 150 pessoas encontram a tranquilidade de um outro tempo para estudar, pesquisar e trabalhar, tendo à mão o acervo todo informatizado do local, de segunda a sexta-feira, das 9h às 18hs, com a ajuda dos bibliotecários e bibliotecárias profissionais. A visita e a consulta ao acervo de modo geral pode ser feito por “qualquer um do povo”, como uma espécie de lema da biblioteca pública que é o Real Gabinete Português.
A consulta é realizada no Salão da Biblioteca. Localizado muito próximo à Praça Tiradentes e ao Largo do São Francisco (assim como da Av. Passos e da Rua da Carioca), são diversos os ônibus que passam próximos à biblioteca. As estações de metrô da Uruguaiana e Presidente Vargas ficam, cada uma, a pouco mais de 300 metros do local.
É claro que, tendo em seu acervo livros como um exemplar da primeira edição de Os Lusíadas, de Camões (publicado em 1572) além de diversos outros livros portugueses do século XVI e muitos manuscritos importantes (incluindo o manuscrito da comédia Tu, Só Tu, Puro Amor, de Machado de Assis), nem todos os volumes da biblioteca podem ser acessados diretamente. Ainda assim, com a devida autorização especial, é possível que investigadores e especialistas acessem também tais raridades do acervo.
Pelo título de “depósito legal” da literatura portuguesa conferido ao local – o único, hoje em dia, fora de Portugal que possui tal encargo – , anualmente o Real Gabinete recebe um exemplar de cada obra publicada em Portugal para seu acervo. São em média 6 mil novos exemplares por ano para ampliar ainda mais a biblioteca como de fato a maior embaixada da literatura portuguesa no mundo.
Mais do que a quarta biblioteca mais bonita do mundo e de possuir esse impressionante acervo, o Real Gabinete Português é também um centro de estudos, e por esse motivo oferece uma porção de cursos, conferências e palestras, em sua maioria ligadas à literatura, com especial enfoque na cultura e na produção luso-brasileira. Além de visitar ou estudar, é possível se associar à instituição, como pessoa física ou jurídica, e com isso ganhar uma série de privilégios, como usar a biblioteca, participar dos cursos e atividades, votar na assembleia, além de poder levar para casa exemplares do acervo por até 15 dias, contato que tenham sido publicados depois de 1950 – além, é claro, de manter viva essa joia da cultura e da arquitetura no coração do Rio de Janeiro.
Ao fim da visita, sair do edifício e voltar a circular pelo centro do Rio é se confrontar novamente com a dura e incrível realidade da cidade, bela e pobre, violenta e espetacular, que rodeia o Real Gabinete Português. Porém, da mesma forma que nunca se sai de um livro da mesma forma que se entrou, uma visita a esse que é um dos mais interessantes, importantes e bonitos locais de uma cidade tão cheia de pontos turísticos e histórias é sempre um passeio transformador, como uma viagem no tempo ao passado que formou, para o bem e o mal, o Rio de Janeiro, Portugal e o Brasil – e, ao mesmo tempo, para o futuro que essa cidade verdadeiramente merece.
Informações:
Real Gabinete Português de Leitura
Rua Luís de Camões, 30 – Centro – Rio de Janeiro – RJ
Fonte: https://www.hypeness.com.br
Autor: Vitor Paiva