A ausência de políticas públicas voltadas principalmente às classes menos favorecidas economicamente, sempre foi uma característica ao longo da história da saúde e da seguridade social no Brasil, conforme afirmações de vários historiadores. Tal hiato, muito embora marcasse um modelo de governabilidade presente na Colônia e no Império, baseado na exclusão da maioria de seus habitantes, possibilitou a fundação e desenvolvimento de entidades de caráter religioso, privado e associativista onde prevaleciam os socorros mútuos e a prática da filantropia por parte de alguns indivíduos dotados de maiores recursos. Além de mitigar o sofrimento de muitos necessitados nas horas adversas, o gesto de benemerência servia também para a construção de uma boa imagem do filantropo junto à Igreja e à sociedade em que vivia. Tal prática, levando-se em conta as mudanças de ordem política e econômica ocorridas em nossa sociedade, se estende até os dias atuais, muito embora, tenha perdido muito de sua pujança, principalmente a partir da segunda metade do século XX brasileiro, quando é verificada uma maior presença do Estado na área social.
No entanto, até o momento em que a presença do Estado nas áreas já discriminadas foi apenas de forma vaga e abstrata (quando existiu), restaram às santas casas, irmandades e associações filantrópicas, a tarefa de socorrer os pobres de uma maneira em geral.Um grande exemplo desta prestação de assistência legal e gratuita no Brasil imperial e republicano, é a Caixa de Socorros D. Pedro V que através de seus vários serviços filantrópicos, se destacou e hoje ainda se destaca sobremaneira neste campo de atuação.
Fundada em 1863 no centro da então capital do império a Real e Benemérita Sociedade Portuguesa Caixa de Socorros D. Pedro V surgiu a partir da ideia de alguns membros da comunidade portuguesa do Rio de Janeiro de homenagear a figura do monarca português D. Pedro V. Dentre os objetivos de seus fundadores, destacam-se os principais que eram:
Perpetuar a memória do rei D. Pedro V também no Brasil, socorrer portugueses na indigência, prisão ou enfermidade, subsidiar passagens para Portugal de compatriotas cujas moléstias somente lá poderiam ser sanadas ou simplesmente repatriar quem lá sonhasse passar o resto dos dias, socorrer viúvas e órfãos desamparados, constituir um elo fraterno entre a corte imperial brasileira e o reino português e contribuir para um melhor clima de amizade entre brasileiros e portugueses em geral.
Vejamos cada um destes objetivos de forma um pouco mais pormenorizada. Nascido em 1837 e falecido prematuramente em 1861, D. Pedro V, no pouco tempo em que ocupou o trono português, se destacou como uma pessoa estudiosa e filantropa. Governando com métodos considerados liberais, o jovem rei se viu às voltas com epidemias e pestes que grassavam no país. Para minorar tais mazelas, dedicou-se à construção de asilos, instituições de caridade e hospitais, o que o fez angariar o apoio da população mais pobre e principalmente de setores da igreja. Ao tomarem conhecimento da morte do monarca, determinados membros da comunidade portuguesa do Rio de Janeiro, entre eles Antônio José Ernesto Nazareth, Leonardo Caetano de Araújo e Reinaldo Carlos Montoro aventam a ideia da criação de uma instituição que deveria não só levar o nome do jovem rei falecido, mas também mostrar aos portugueses do reino, que os patrícios d’além mar estavam a par dos fatos e acontecimentos do reino e principalmente solidários com seus dramas. Assim, dois anos após a morte do rei, é fundada a Caixa de Socorros D. Pedro V. Embora a data adotada seja o 31 de maio, na verdade a fundação da instituição foi um processo que ocorreu ao longo de 1863. A reunião para discussão de estatuto e corpos dirigentes só ocorreu em 2 de agosto no Real Gabinete Português de Leitura. Já a primeira doação para a instituição tem a data de 25 de novembro. Convém lembrar, que já existiam no Rio de Janeiro outras instituições que cumpriam os mesmos objetivos com os quais a Caixa de Socorros agora se dispunha também a cumprir e também ligadas a grupos imigrantes.
O sonho de conquistar no Brasil o que era muitas vezes improvável em Portugal, como riqueza, prestígio ou apenas uma vida digna, sempre acompanhou os portugueses desde os tempos coloniais. Mesmo no final do século XIX, quando o governo promove a vinda de europeus com suas famílias para o Brasil, são ainda os portugueses os mais presentes nos portos de desembarque. Porém, como a riqueza não sorria para todos. Muitos acabavam na indigência, morando em morros ou cortiços juntamente com brasileiros pobres, ex-escravos, mestiços, imigrantes de outras nacionalidades etc. Sujeitos aos mesmos problemas e tragédias destes, conforme revela a literatura de Aloísio Azevedo. A imagem das ruas insalubres do Rio de Janeiro imperial, coalhada de patrícios bêbados, doentes ou mendigando, certamente não agradava alguns portugueses mais bem situados economicamente.
Em alguns casos, não haviam recursos no Brasil para o tratamento de algumas moléstias. Sendo assim, a instituição optou por patrocinar a viagem para Portugal de doentes para lá se tratarem. Além do mais, sabiam eles que seria um alento para tais portugueses morrerem em sua terra, junto à seus familiares.
A ajuda aos órfãos e viúvas também foi uma preocupação da direção da Caixa. Morrendo ou se tornando inválido o chefe de família, os seus muitas vezes ficavam ao desamparo. Assim, na categoria de sócios, a Caixa cuidaria de socorrer a família com quantias em dinheiro e escolas para seus filhos. Haja vista que um dos fundadores, Adolpho Manuel Victorio da Costa era proprietário do famoso Colégio Victorio, uma instituição de ensino da corte que funcionava no regime de internato, externato e semi-internato. A cada ano, o professor Victorio concedia diversas bolsas de estudos a órfãos portugueses em seu colégio. O Relatório social de 1871 nos informa os direitos dos sócios:
Médico, botica e dieta quando internado, mensalidade quando não pode trabalhar. Passagens para dentro ou fora do país.
Desde sua origem que a Caixa de Socorros recebeu autoridades consulares portuguesas em trabalho no Brasil. Sejam visitas à farmácia e ao ambulatório médico ou em sessões solenes e datas comemorativas. A instituição contou também com a presença de autoridades brasileiras, como a visita do imperador D. Pedro II à enfermaria organizada pela Caixa no convento de Santo Antonio em 1873, por ocasião da epidemia de febre amarela ou a visita, em 1933, do então prefeito do Rio de Janeiro Dr. Pedro Ernesto. Nos seus Relatórios Sociais, documento impresso em forma de livreto que publicava a cada final do mandato de uma diretoria, ela sempre registrou e agradeceu a presença de autoridades em seus eventos. Esta característica diplomática da instituição contribuiu muito para a consolidação de seu prestígio entre autoridades lusas e brasileiras.
Desde os primórdios da independência que conflitos e rusgas entre brasileiros e portugueses ocorriam nos centros urbanos. Para muitos nacionais, forjou-se a figura caricata do português avaro, explorador de mão-de-obra barata, dono de cortiços, tavernas etc. Na verdade, tal fenômeno de rejeição, verificados em outros povos de passado colonial, representa mais um ingrediente a compor a consolidação da nacionalidade. O colonizador, que até ali convivera perfeitamente na terra, inclusive constituindo família com naturais, passa a ser o estrangeiro ao qual só cabem a vingança ou a expulsão. Ao abrir sua farmácia e ambulatório médico e franqueá-los não só a portugueses mas a todos os brasileiros que dele necessitassem, a Caixa promoveu também um elo de grande importância para as melhorias das relações entre os dois povos. Uma outra face dos portugueses do Brasil seria apresentada aos brasileiros.
Vejamos agora, alguns dos fatos mais importantes que marcaram a trajetória da Caixa de Socorros D. Pedro V.
Combate às epidemias
Um dos maiores desafios enfrentados pelas autoridades sanitárias da cidade eram as constantes doenças que a assolavam periodicamente. Tal quadro se agravou a partir dos anos 1870, com a epidemia de febre amarela. Dado o grande número de portugueses afetados pela moléstia a Caixa de Socorros, através do então presidente José Maria dos Reis, liderou uma Comissão formada também por outras entidades assistenciais portuguesas para levantar fundos que pudessem ser aplicados na luta contra as epidemias. Além de manter a farmácia mais tempo aberta, a Comissão abriu um posto de internação e tratamento no Morro de Santo Antônio também no centro da cidade, ocasião em que recebeu a visita do imperador D. Pedro II. Outros surtos da doença ocorreriam em datas posteriores, além da epidemia de varíola em 1904 ou a gripe espanhola de 1918. a Caixa, em todos os momentos se fez presente mantendo seu ambulatório e farmácia abertos por mais tempo ou instalando postos de vacinação.Convém lembrar que muitos serviços prestados pela Caixa de Socorros eram executados por voluntários na maioria, médicos e advogados em início de carreira, para ganhar experiência ou figuras de renome da época, como o Dr. Silva Rabelo e o jurista Evaristo de Moraes.
Os títulos recebidos pelo governo português.
A luta da Caixa de Socorros pelo reconhecimento de seu trabalho junto às autoridades portuguesas passou também pelos apelos aos governantes lusos por apoio financeiro ou outras formas de auxílio. Cientes de que realizavam uma atividade junto a portugueses do Ultramar que caberia também ao governo português, as diretorias da instituição jamais economizaram esforços para serem lembradas nas terras do Reino. Tal reconhecimento ocorreu no governo de D. Carlos, que concedeu à Caixa os títulos de Sociedade Benemérita (1897) e Real (1902).
O apoio nas catástrofes
Em 1892, um forte temporal arrasa grande parte do norte de Portugal. A Caixa, tendo na presidência Custódio Olívio de Freitas Ferraz, enviou uma doação de 18.090$000 para o governo português para socorro dos atingidos pela tragédia. Também convém assinalar a ajuda na construção em Portugal da canhoneira Pátria em 1902. Em 1910, devido a um terremoto em Portugal, mais uma vez a Caixa manda apoio financeiro para vítimas. O mesmo ocorreu em outras calamidades naturais, como o terremoto na Ilha de Faial no arquipélago dos Açores em 1932 e o ciclone ocorrido no Rio Grande do Sul e em Portugal em 1940. Ao longo da Segunda Guerra Mundial, com o torpedeamento de navios da marinha mercante brasileira por submarinos alemães, a Caixa de Socorros também contribuiu com 10.000$00 para a subscrição para as famílias das vítimas.Algo semelhante aconteceria também na década de 80, quando a direção enviou vestimentas e calçados para as vítimas dos terremotos no México e na Colômbia.
A morte do rei D. Carlos.
A trágica morte do rei D. Carlos e seu filho em 1908 repercutiram intensamente na comunidade portuguesa e principalmente entre a direção da Caixa. Haja vista, a visita já confirmada que o rei faria ao Brasil naquele ano e provavelmente, à sede da instituição, que se preparava para o que seria o maior evento de sua história. Como aconteceu em Portugal, o regicídio dividiu a colônia portuguesa no Brasil entre os partidários da monarquia e republicanos. A direção deliberou guardar luto por oito dias e participar de todas as celebrações em memória do rei e seu herdeiro.
O incêndio de 1910.
Outro fato expressivo foi o incêndio ocorrido em 1910 na sede social, instalada nos andares superiores de um grande prédio da avenida Visconde do Rio Branco, centro do Rio de Janeiro. O sinistro tem início no térreo, onde funcionava o Cinema Rio Branco. Trabalhos periciais indicaram incêndio criminoso começado no cinema e rapidamente propagado. Grande parte do acervo documental, quadros, móveis e demais objetos da instituição foram destruídos. Notícia principal dos jornais no dia seguinte, o fato mostrou o quanto a população carioca prezava e necessitava dos serviços da instituição. Bem como os jornais, através de pequenas biografias, lembraram os grandes feitos da Caixa na área da assistência pública.Impedida pela prefeitura de reconstruir sua sede, optou a diretoria de adquirir por leilão o imóvel onde se encontra até os dias atuais, na avenida Marechal Floriano também no Centro do Rio de Janeiro.
O legado de Paulo Felisberto e o Lar D. Pedro V.
Figura de destaque no meio associativo luso-brasileiro na primeira metade do século XX, o comendador Paulo Felisberto Peixoto da Fonseca tornou-se na década de 40, o maior benfeitor da instituição. Tendo feito em 1933 a vultosa doação de 100.000$000, complementou-a posteriormente com outras doações em dinheiro, terrenos e imóveis, com o compromisso da Caixa em cumprir obrigações testamentárias referente a ele e sua esposa.As doações de Paulo Felisberto proporcionaram à instituição a realização de algo perseguido desde a sua fundação: A construção de um asilo para portugueses desamparados. A inauguração do Lar D. Pedro V no bairro de Copacabana, ocorreu em 1979, na gestão de João do Carmo Rosa e Silva.
As celebrações dos 125 anos.
Na década de 90, ao comemorar seus 125 anos de existência, a Caixa de Socorros finalmente recebeu a visita de um governante português, abortada desde a morte do rei D. Carlos. A visita do então presidente Mário Soares a sede da instituição foi o ponto alto da série de comemorações ocorridas da gestão de Artur dos Santos Pereira.
Atualmente, a Caixa de Socorros D. Pedro V caminha para seu sesquicentenário oferecendo praticamente os mesmos serviços desde sua fundação. Seu acervo, o que sobrou do incêndio de 1910, está sendo catalogado e digitalizado para no futuro, ser aberto aos pesquisadores em geral. São mais de 30 mil faces de documentos de uma História que não correrá mais o risco das chamas.
Referências
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço – Rio de Janeiro – Ediouro – 2002RIBEIRO, Gladys Sabina. “Cabras” e “Pés de chumbo”: Os rolos do tempo. O antilusitanismo na cidade do Rio de Janeiro, 1889-1930. Niterói – UFF – 1987 – Dissertação de MestradoSILVA, Maria Beatriz Nizza da. Filantropia e Imigração – A Caixa de Socorros D. Pedro V. Rio de Janeiro – 1989
Fonte: http://alemdemacondo.blogspot.com/2012/07/a-caixa-de-socorros-d-pedro-v.html